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Diário de Guerra

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Onze de Junho de 1998

o navio ainda está atracado na Base Naval de Lisboa, são nove da manhã e eu acabei de chegar. Segundo a imformação que temos largamos às onze e meia… vamos para a guerra, para onde já estivémos e onde tantos morreram… Guiné Bissau.

O País está um caos, guerra civil, desta vez não vamos para combatre, mas temos ordens para responder em caso de ataque. Desta vez vamos lá buscar refugiados Portugueses e Guineenses, levá-los para Cabo Verde… Ainda tenho dores nos ombros por causa da faina de munições e mantimentos de ontem à tarde. A guarnição está praticamente toda no cais a fazer as despedidas, mulheres, filhos, mães e pais que vieram dizer um adeus ao seu marinheiro. Eu fiz as minhas despedidas em casa, apenas o meu Pai veio aqui despedir-se… esteve aqui no navio há pouco. Nunca o tinha visto tão assustado. Ele sabe que eu sei tomar conta de mim, mas mesmo assim diz-me para ter cuidado…

Sei que vou para um País que está em guerra, sei bem que nos vamos meter mesmo no meio dela, no entanto não tenho medo… Estou estranhamente calmo, em contraste com o resto do pessoal.

São onze e meia em ponto, nos altifalantes do navio ouve-se a voz tão esperada: “Vasco da Gama Guarnição! Faina geral”. Está na hora, cada um vai para o seu posto, Vamos para a guerra.

Dezasseis de Junho

Estamos na foz do Rio Geba a aguardar ordens e a assistir à guerra que prosseguia país adentro… Aquilo que nós vimos na televisão durante a guerra do Golfo, era quase tipo filme. Aqui ouviam-se os tiros ao longe, as explosões, rajadas passavam em ambos os sentidos. Eu tinha um lugar de camarote para uma guerra e não era nada agradável.

Daqui para a frente as datas ficaram confusas. Lembro-me de quase tudo o que se passou, pormenores, situações, mas não me recordo das datas.

Houve um dia em que eu estava de quarto e tinha ido à ponte entregar mensagens ao Oficial de serviço e enquanto ele via o serviço eu sai para a asa da ponte de estibordo… ainda estávamos a navegar nas águas do Geba e vindo do nada ouço o som de um obus de morteiro a cair. eu estava com os braços apoiados no parapeito e vejo todos à minha volta a correr que nem loucos. Eu não me mexi um milímetro. Talvez eu tivesse pensado que, se o morteiro me caísse em cima nem sequer sentia nada. Vi nítidamente o obus a cair na água a mais ou menos cinquenta, talvez cem metros de distância. Felizmente não explodiu… talvez não estivesse aqui hoje.

Pouco depois voltei para o centro de comunicações e chegou uma mensagem de Lisboa com as nossas ordens. A vantagem de trabalhar em comunicações é que somos os primeiros a saber de tudo.

Temos que ir a terra apanhar um grupo de refugiados.

Uma vez que o cais não tem comprimento nem profundidade suficiente para podermos atracar, os nossos fuzileiros vão em zebros (botes de borracha) para ir buscar os refugiados. A principio os Zebros podem não parecer grande coisa, mas em quatro horas trouxemos cerca de quatrocentos refugiados para bordo…

Com os refugiados a bordo, seguimos para Cabo Verde, onde chegámos cerca de trinta e seis horas depois.

Durante este caminho, durante as minhas horas de folga ao serviço de comunicações do navio, eu estava no hangar de helicópteros a ajudar os refugiados. Distrubui mantas, fruta, pacotes de leite com chocolate para crianças e graúdos, pão com manteiga e fiambre. Dei palavras de conforto a quem precisava. Como eu, estava toda a guarnição do navio, a ajudar, alimentar, cuidar.

O navio tem normalmente uma guarnição de duzentos homens, com um destacamento extra de fuzileiros e agora cerca de 400 refugiados deitados no chão do hangar. Alguns deles ainda se queixaram e exigiram uma cama ao que lhes foi respondido que se quisessem podiam voltar para a Guiné.

Muitas mas coisas se passaram neste mês e meio em que lá estivémos, no total conseguimos retirar mais de mil refugiados para Cabo Verde. Além dos fuzileiros, levámos também uma pequena equipa dos G.O.E. que tiveram como função entrar pela cidade de Bissau adentro e escoltar o embaixador e respectivos adidos para o navio.

Eu assisti a tudo de bordo, enviei e recebi toda a informação do Comando Naval em Lisboa.

Não estive na guerra e no entanto estive na guerra

Eu – 23.01.2004